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Correspondência Interna
Saturday, July 26, 2003
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“Zona de combate”


Passear entre destroços. É isto que faço agora. Passeio entre escombros de mim, vejo pedaços da minha personalidade, atitudes que um instante segurou para sempre, agora que as vejo e escrevo. Não quero pegar em nada. Não quero colar nenhum pedaço de mim. Quero apenas que tudo fique assim, em escombros, em cacos, para que eu possa levantar os olhos destas palavras, direccioná-los para o espelho, e enfrentar assim, a verdade daquilo que eu sou. O olhar sem expressão, o brilho ausente, a força esquecida. Vejo esta imagem de mim e enfrento os destroços que sou.

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“O caminho do Verão”



Quantos invernos passaram desde aquele último?
Penso nisto, agora que olho pela janela, e o frio me lembra
Que um novo Inverno se aproxima...
Ouço a tua voz, de madrugada, e temo o inverno,
Não aquele que o frio me traz,
antes aquele que a memória mo guardou...
Ouço a tua voz, nesta madrugada, realmente gélida,
E há em mim um algo que me seduz a sonhar.
Mas talvez eu tenha desaprendido essa arte,
Pelo menos em relação a ti,
Desde aquele inverno, tão frio,
Sem nenhum olhar pela janela para mo lembrar...
Ou talvez não...
Talvez eu aprenda que a arte de sonhar não está no
calor de uma casa quando o inverno gela,
Talvez eu aprenda que a arte de sonhar está na tua voz,
Nessa tua voz que me aquece,
Quando as madrugadas gélidas me entram pela casa,
E a tua voz me ensina,
O caminho do Verão.




Porto, 14 de Novembro de 2001.

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Estou parado a pensar na beleza estética do poema que quero escrever. Estou aqui sentado a pensar na transparência das palavras que escolherei, estou aqui atento, a preparar a opacidade dos espaços entre cada uma dessas palavras. Paro para reflectir bem sobre como as frases escorrerão umas das bocas das outras, como águas de cascata, para que, no fim, o poema seja como um riacho límpido correndo por entre sombras e árvores de floresta. Estou aqui, e preparo tudo isto. Estou aqui, e com uma precisão científica, desenvolvo o poema na minha cabeça. Preparo-me para o começar, os meus dedos exalam já a transpiração de tudo o que irão, agora, digitar. De súbito, no entanto, ergo os olhos para a fotografia de ti, que está no espelho perante mim. E começo a esquecer tudo o que previra. Como pensar o poema, se me tomas assim de assalto e, num rompante, viras tudo ao contrário? Como posso programar as palavras se agora é a tua imagem que me dita palavras, Lua, Sol, Mar, Horizonte, sem um nexo ou uma causalidade estética? Como posso escrever poesia se me impedes de a pensar? Como posso preparar frases quando só tu existes?

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“O Amor”



É o não ouvirmos nunca o que temos para nos dizermos. São as palavras repetidas e nunca, nunca ouvidas. São os olhares que se perdem, que se perdem a meio do caminho, a meio do caminho que fica entre nós os dois, e que é todo o espaço vazio do mundo em si. É o nunca entendermos as frases um do outro, perceber-lhes a construção gramatical, neurologicamente apreender-lhes o sentido, mas não vermos depois o sangue com que elas foram ditas escorrer pelos poros de para quem elas foram ditas. É a nunca compreensão total do outro. É o desencontro que sempre assiste às cenas da vida de todos os dias, é o desencontro que depois guardamos na memória para recordarmos depois, um dia, mais tarde, sempre quando já é tarde, e na percepção do desencontro ver, como num negativo, a perfeição do encontro, então não apreendida. É só por isso que se escreve, porque os dias estão repletos de silêncios incómodos, porque as palavras estouram de espaços sem nada, porque os olhares encontram o seu destino e nem então se deixam de sentir perdidos. É por ser nisto que a vida consiste que se escreve. Para anotar este mal estar hoje, este hoje que é os dias todos, e para na alquimia das palavras escrever as frases não ouvidas, escrever as frases não compreendidas, escrever as frases não sangradas, escrever os olhares perdidos no meio do caminho, escrever os olhares perdidos no seu próprio destino, escrever os silêncios sem sentido, escrever tudo, apelando à memória, apelando ao depois, apelando ao momento que o futuro guarda em que num entardecer melancólico, todas as frases, palavras, silêncios, olhares, se nos revelem na perfeição que não soubemos então apreender. Escrever, porque um dia sempre a memória tudo rescreve. É só quando já é tarde que percebemos que não ouvimos nunca o que tinham para nos dizer. Só quando já é tarde recuperamos os olhares que deixamos perder no meio do caminho, e os olhares que deixamos perdidos no fim do caminho. Só quando já é tarde percebemos a nunca compreensão total do outro. Só quando já é tarde percebemos que o desencontro existe e assiste às cenas da vida dos dias todos. Só quando já é tarde conseguimos perceber os silêncios incómodos, e as palavras que estouravam de nada, e os estilhaços que elas nos cravaram na alma para sempre. Só quando já é tarde se compreende o amor e tudo o que o amor foi enquanto no palco do desencontro falávamos do nosso amor. Só quando já é tarde, muito tarde, quando o amor nada mais é do que a memória dolorosa de tudo o que foi. Ou quando é tarde, muito tarde, quando são seis horas da madrugada, e eu te escrevo este poema e compreendo o que é o amor. É ser tarde, é não dormir, é pensar em ti. É ser tarde e eu perceber que tudo se nos escapa por entre os dedos dos instantes como se o amor fosse areia, porque o amor nunca acaba, mas também ele escorre nas frinchas do tempo. É ser tarde e eu pegar nas palavras, tentar segurá-las, e vê-las tombar para o papel. Tentar preencher todos os espaços para que o amor não se perca por entre eles. Mas perde-se, perde-se sempre. Menos no momento em que penso em ti, em que a tua imagem é a página onde deposito cada uma dessas palavras, e sinto então que o nosso amor se prende ao teu desenho, se molda em cada uma das tuas linhas, e finalmente encontra o seu caminho por entre os espaços que o guiam de ti até às palavras em que te escrevo.

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“Id, Ego, Superego ”


Quantas vezes o desespero me atirou para a aniquilação nos sentidos? Quantas vezes, para não me sentir eu, procurei tudo o que pudesse sentir. Ser, ser até ao extremo em que já não se é. E depois voltar a Ser, e ser um Ser que já o foi até ao extremo para a si próprio se esquecer. Mas este Ser é vigilante. Este Ser memoriza tudo o que nos encandeia as sensações. Este Ser regista cada um dos nossos actos, cada uma das nossas virtudes, cada uma das nossas traições. E passada a loucura, é ele que surge, imponente, despejando a culpa sobre o Ser que o traiu. Não podemos fugir de nós a vida toda. Por poucos momentos somos capazes de nos escapar a nós próprios. Mas nem assim escaparemos ao juízo deste Ser que em tudo atenta. E depois fazemos a ponte, desculpamos o primeiro perante o segundo, atenuamos as circunstâncias, convencemos o segundo a usar da sua magnanimidade. E prosseguimos, vida fora, como se fossemos apenas um. Mesmo não o sendo. E porque há de um ter razão e não o outro? É preciso questioná-lo sempre. É preciso não aceitar nada que nos surja imposto, por mais evidente que pareça. Há que pensar, julgar, criar. A quem cabe tudo isto? Ao eterno jogo dos três. Ao eterno jogo da criação e recriação de cada indivíduo.

Ass: Ego.

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“Eu”

“Que brusca contradição serei eu? Tumultuoso e porém, aparentemente, sereno. Extremista e, contudo, já por tantas vezes a procura da harmonia me levou às meias verdades, ao meios termos. Apaixonado, e distante. Generoso e cruel. Eu sou a ponte entre estes dois eus que se degladiam? Ou serei antes a própria batalha que travam? Ou serei ainda estes dois, ou mais do que dois, que se guerreiam? Sou, provavelmente, todos eles. Sou Eu, o que me construo na minha própria destruição, o que me afirmo nas minhas contradições, o que nasço em cada uma das minhas mortes.”

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“Escrever-te é um estranho designío”

Escrever é um estranho designío. Escrever é procurar uma lei da permanência por entre a volubilidade de tudo perante o tempo. Escrever é fixar. Escrever é conceptualizar. E se milhares de coisas existem conceptualizáveis, existirão outras tantas cuja essência reside, precisamente, no extravazar de fronteiras, numa vida situada por entre tudo aquilo que tem um nome, um género, um número. A subjectividade é, a um mesmo tempo, a maior companheira e a mais terrível armadilha para aquele que escreve. Sem a subjectividade a escrita nunca poderia ser mais do que um mero inventário de factos, situações, cenários. E, no entanto, a subjectividade é uma armadilha que tende a fechar-se sobre si própria. Ser subjectivo é tentar ser objectivo em terrenos onde a objectividade é refém de cada interpretação, ou, dizendo-o por outras palavras, em terrenos onde a objectividade é irremediavelmente subjectiva.

O teu sorriso puxou-me para dentro do átrio dos sonhos, e na balaustrada das escadarias, o teu olhar ensinou a minha intuição a caminhar de encontro a esse templo solar que é a tua existência em em mim.

São palavras. Não existe um átrio dos sonhos, o teu olhar não tem a propriedade de ensinar à minha intuição o caminho para um templo solar que não existe. São figuras de estilo que pretendem significar algo, que pretendem dizer que amo o teu sorriso e o teu olhar. Pretendem dizer isso mas, mais ainda, pretendem fixar neste espaço o que é o teu sorriso, o que é o teu olhar, e a força que ambos têm, essa força que me leva a escrever a palavra amor.
Não o conseguem, no entanto. Tu, tu mesma, ficarás sempre de fora desta página, do lado em que lês tudo aquilo que te tento dizer. O teu sorriso não entra aqui, está aí, contigo, como está comigo quando, sem aviso, mo atiras e tornas mágica a minha forma de ver o mundo. O teu olhar, nestas linhas, é só isto, a palavra olhar. E esta palavra não é o teu olhar, esse olhar que me guia para um templo solar da tua existência em mim que não existe.
No entanto, é o que recordo, e é o que pressinto agora ainda ao meu redor: o teu sorriso a explodir, o teu olhar nesse templo de sol e de luz. Tudo isto existe, ainda que as palavras redundem numa forma física, ainda que as palavras sejam sempre e só duas coisas: palavras, por um lado. imagens, por outro.
Escrever-te é um estranho designío. Escrever-te é fixar-te. E tu, toda a complexidade do teu ser, toda a brutal simplicidade do teu ser, nunca se fixam em nada. Sorrir é o que tu fazes. Sorriso é o que eu escrevo. Entre o verbo e o substantivo, existe toda a distãncia do mundo. É nesta distância imensa que tu existes. E é nesta distância que me puxas para um átrio dos sonhos que as palavras escrevem enquanto dizem que não existe. Mas existe. Essa distância entre esse verbo e esse substantivo é o limbo em que as palavras não cabem. É nesse limbo que encontro o caminho para o teu templo solar. É nesse limbo que encontro a tua existência em mim. É nesse limbo que a nossa vida se desenrola e eu procuro, sem palavras, escrever-te, sem contruções frásicas, fazer-te viver neste poema. É nesse limbo que me assalta o estranho designío de te escrever. E é por isso que é neste poema que me puxas para o átrios dos sonhos, que me conduzes para o templo solar do nosso amor. Porque toda a poesia não está aqui, não está neste agora. Está em ti. E é em ti que, numa míriade de cores, de atríos de sonhos e de templos solares, explode este estranho designío de escrever-te.

Porto, 13 de Julho de 2003 09:15m

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“Esboço sobre o Vento”


Talvez possa encontrar a rota, assim que de uma rota me esquecer. Talvez possa seguir um caminho, logo que não mais me lembre de que deve existir um caminho a seguir. Enquanto procurar, sei que me irei sempre perder. Olho, olho para o campo vasto das possibilidades e sinto o tédio de as poder ver a todas... Como se procurasse algo mais, algo que está por detrás, mais longe, mais perto, algures, simplesmente algo que não conheço... é por isso que vagueio, é por isso que erro, é por isso que, a caminho dos 27 anos de idade, sou ainda uma pessoa sem uma direcção, sem um projecto que verdadeiramente saiba que tudo farei para sustentar... O vento sopra, às vezes seguro-me a um chão e deixo apenas que ele passe, sinto-o na face, mas não vou com ele, pois sei que nunca as promessas se cumprem (e sei que sou eu que faço essas promessas, não é o vento, e sou eu que não as cumpro), mas outras vezes vou, porque julgo que nasci para o vento para viajar ao sabor do vento, mesmo que seja um vento que não vai nunca para lado algum, pois mesmo esse vai para toda a parte... Eu nasci para o Vento. É essa a minha história. Será sempre essa a minha história.


Porto, 13 de Junho de 2002

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És um Deus que dança.
Vida é o teu nome.
Inocência é o teu nome.
Pureza é também o teu nome.
Eu chamo-te Duarte.

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“Conhecimento mais do que perfeito”


Ando de roda das palavras,
Como se fossem elas que me pudessem mostrar o caminho
Até ti...
Ando de roda das frases livres,
Como se nelas pudesse encontrar uma via
que até ti me levasse...
Ando de roda de todos estes nadas
como se em alguma destas fórmulas te pudesse
Encontrar....
Já sei que não,
Já sei que não é este o trilho,
O caminho das palavras que,
Mesmo sendo para ti,
Só para mim reservo...
Já sei que não é esta a forma
de escrever a equação
Que termina no perfeito conhecimento de ti...
Mas tu nunca foste matemática,
Nem nunca a matemática a ti se aplicou...
A poesia?
Não sei as letras com as quais se escreve o teu nome
no meu coração,
Nem sei as letras com as quais se escreve o meu nome,
No teu coração,
E sinto que ando à roda das palavras,
Sinto que ando à roda das frases livres,
sinto que ando à roda de todos estes nadas,
Como se procurasse uma matemática
Para nos poder calcular...
Mas tu nunca foste matemática,
Nem nunca a matemática a ti se aplicou...
Por isso te amei...
Por isso nunca soube parar de te amar...
Por isso te amo...
Por não te saber enquadrar em nada do que conheço
E sentir, ao mesmo tempo,
Que nada do que sei enquadrar,
Conheço como te conheço a ti...

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Às vezes, quando já a noite ameaça acordar nos seus tons de madrugada, sou assaltado pelo eco das palavras por pronunciar. Refiro-me aos espaços vazios entre nós, falo da eterna impossibilidade de sermos o outro. Lanço a minha voz de silêncio contra as paredes da luz ainda ténue, e o que ouço é o que sempre tivemos para dizer um ao outro, ouço as palavras que sempre ficam por ser ditas, escuto as frases que o futuro sempre guardará, roubando-nas em todos os presentes.
Julgo que esta sensação nasce da minha lúcida percepção de que o amor é sempre incompleto. O amor dá-nos a ideia da perfeição, mas somos atraiçoados por não sermos capazes dessa perfeição com que sonhamos. Por isso, quando olho para o Amor, nunca escapo a essa imagem dos espaços vazios, dos olhares que se tornam um único olhar, mas sempre e só nesse espaço de sonho que sentimos.

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“A deusa das cores e da luz”



Que cores são essas, as cores com que todos os dias me desenhas o infinito?
Que Sol aprisionas nos teus lábios, quando o teu desenho da tua boca rouba ao mundo a luz, e ma entrega num beijo?
Que Lua guardas nos teus olhos, quando esse castanho de amêndoas e de Outono, me guia através de todas as noites?
Que cores são essas, as cores com que, todos os dias, me desenhas os mapas até ao infinito?
Que Deus te poderia ter criado? Nenhum. Nem um saberia a Luz do teus lábios, nem um saberia a Lua, as amêndoas e o Outono dos teus olhos. Nem um saberia mesmo decifrar os teus mapas de cores até ao infinito.
Que Deus criaste? O Deus da Luz dos teus lábios, o Deus da Lua e das amêndoas e do Outono, o Deus das cores que ensinam a viagem para o infinito. O único
Deus em que acredito, porque dos seus lábios bebo Luz, porque dos seus olhos cheiro amêndoas e Outono, porque dos seus mapas parto numa viagem de cores até ao que não tem fim. Numa viagem de cores até ao infinito da tua presença em mim.

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“Analogia”


Aquela manhã resolveu esquecer a chuva que lhe fora prometida. Acordou mais cedo do que a própria aurora, e irrompeu no mundo, espalhando brutais raios de sol por toda a parte.
Tu resolveste esquecer a chuva que te fora prometida. Acordaste mais cedo do que a própria vida, e irrompeste em mim, e, tal como aquela manhã o fizera, também tu espalhaste brutais raios de sol por toda a parte.

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Friday, July 11, 2003
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I

Confesso que a perenidade que ao tempo se encontra umbilicalmente ligada sempre me perturbou. Esta perenidade, entenda-se, é aquela que se relaciona directamente com o facto de o tempo nunca parar e nós, que do e no tempo vivemos, vemo-nos forçados a, mesmo que o quisessemos, também nunca pararmos. É assim que as pessoas passam pelas nossas vidas e, quantas das vezes?, se algo as agarra a nós é a memória, é a lembrança de tempos, e aqui se comprova o que acima escrevi, de tempos idos...
Talvez por isso exista em nós a tendência a recordar a nossa vida por épocas. Uma época, se bem que se reporte a algo que está irremediavelmente no passado, é também algo que, precisamente à força de o recordamos como uma época, se situa no presente. É um bloco estanque, feito de memórias, de maneiras de sentir, de formas de pensar mas, acima de tudo, de uma determinada aura, de uma determinada, digamos assim, cor de fundo no horizonte da memória: esta característica é, em última instância, o seu carácter, a sua essência.
Ao pensarmos numa determinada época da nossa vida, podemos desejar lá regressar, voltar a vivê-la, mas esse é um desejo que só levemente nos incomoda. É nostalgia. A nostalgia, no entanto, é a nossa reconciliação com o passado. Assim, no fundo aceitamos bem essa época que é já passado e é com uma quase alegre nostalgia que recordamos algo que, apesar de tudo, se constituiu numa época e não caiu, afinal, na verdadeira armadilha que o tempo, uma vez que nunca pára, verdadeiramente comporta: o esquecimento.
O que no fundo quero aqui explicar, é que a vida se situa exactamente nesse fio da navalha entre a memória e o esquecimento, entre o que retemos e o que o no tempo largamos. O que conta, por muito que se pense o contrário, por muito que sejamos obrigados a pensar agora no agora, por muito que sejamos levados a pensar agora no amanhã, o que conta nunca é o presente, e muito menos o futuro. O que verdadeiramente conta é, precisamente o passado, esse local onde, afinal de contas, o tempo já passou, onde, de facto, o tempo já não passa mais, e é nítida a diferença a entre a memória e o esquecimento. E é exactamente por esta ser a única distinção verdadeiramente importante que, no fim de todas as coisas, só o passado verdadeiramente conta.

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A Televisão antes e depois do Big Brother

Andy Warhol escreveu que “no futuro, todos seremos famosos durante quinze minutos”. Não saberemos, ao certo, qual o alcance que o expoente máximo da Pop Art via nas suas próprias palavras. Talvez seja um exagero considerarmos que, de facto, todos um dia seremos famosos durante quinze minutos, assim como será abusivo pensarmos que este fenómeno se possa vir a verificar, não na totalidade dos seres humanos, mas numa grande maioria deles.
Importa aqui, parece-me, analisar a frase directamente a partir do conceito que, julgo, lhe está subjacente. “No futuro todos teremos os nossos quinze minutos de fama” quer dizer, apenas, que a fama retratará o Pop, o popular, na mesmíssima proporção que a arte o fez, precisamente na Pop Art, sendo as latas de sopa “Campbell’s” o mais exacto exemplo da afirmação precedente.
O que continham estas latas de sopa de tão especial que pudesse levar um artista plástico, Warhol, a representá-las? Nada. A sua essência residia exactamente na sua vacuidade, em nada terem que pudesse ser considerado artístico. Warhol viu nestas uma manifestação de uma cultura emergente, o prêambulo da sociedade massificada, da sociedade de consumo? Se não o viu, tê-lo-á, pelo menos, pressentido. Retratou-as maravilhado com uma cultura verdadeiramente popular que descobriu? Ou, ao retratá-las, lançou um olhar irónico, quiçá desiludido, perante uma cultura assente, precisamente, no facto de ser popular, de ser para todos, de ser de todos e ser, assim, uma cultura em que a arte já não é verdadeiramente interventiva? É possível que Warhol tenha percebido o quão kitsch o mundo se tornava e ele próprio terá levado a sua arte a um extremo do kitsch. Para que pudéssemos compreender até que ponto o kitsch é vazio? Para que pudéssemos compreender até que ponto o kitsch é ridículo? Ridículo na medida em que, mesmo vazio, sorri, sorri sempre, mesmo quando chora, sorri.
Não sendo importante até que ponto Warhol pretendia ser interventivo, é porém importante compreendermos que na sua vida, nas suas expressões artísticas (recordam-se dos célebres filmes realizados pelo artista plástico americano?), nessa frase que ficou para sempre, é notório que Warhol percebeu em que direcção caminhava o mundo, mais concretamente a sociedade americana e, por inerência, grande parte do mundo ocidental, no qual Portugal se insere.
Poder-se-á, embora eu pense que o leitor mais atento já terá compreendido de que forma Andy Warhol surge neste contexto, dizia eu que se poderia perguntar o que é que Andy Warhol tem a ver com o “Big Brother”, mais ainda quando este nome, e o próprio conceito do programa (várias pessoas fechadas numa casa, constantemente vigiadas), advêm da mente de um brilhante escritor, Aldous Huxley, e de um livro em particular, “O Admirável Mundo Novo”. Assim sendo, o que é que Andy Warhol tem a ver com o Big Brother?
A resposta a esta questão é a seguinte: O programa em si deriva, na forma, do conceito de Huxley. No conteúdo, porém, alimenta-se do Pop de Warhol. No aspecto sociológico, e aqui entra o antes e o depois da televisão, porque é que o Big Brother existiu, porque é que foi um sucesso, o que é que veio mudar, dizia eu, no aspecto sociológico este Big Brother é muito mais de Warhol pois foi este quem o previu nos moldes a que hoje, em termos gerais, o programa Big Brother ou, mais ainda, a cultura Big Brother se cinge.

Para entendermos melhor o alcance daquilo que para trás se tentou explicitar, é necessário que atentemos no próprio programa em si. Um determinado número de pessoas está encerrado numa casa, sem qualquer meio de comunicação para com o exterior. Essas pessoas irão estar ali um determinado espaço de tempo. A fazer o quê? Por muito que se inventem tarefas, desafios, etc, essas pessoas, durante o tempo que estiverem ali, e esse é verdadeiro objectivo do programa, vão estar ali a serem elas próprias. Quem são essas pessoas? Pessoas normais, comuns. Qual é a sua marca distintiva? O que é elas têm de tão especial para aparecerem, e viverem durante meses, na televisão, perante o olhar de milhões? Nada. Absolutamente nada Com o devido respeito, são exactamente iguais a milhões de outras pessoas. Precisamente como as latas de sopa Campbell’s...

Chegamos aqui a um ponto que me parece essencial: a descaracterização dos indivíduos. O vazio interior porquanto já não são as latas de sopa, mas antes os seres humanos, as suas reacções, a sua vivência emocional e afectiva, a sua rotina diária, que se tornam objectos de consumo das massas. E é paradoxal que esta cultura de descaracterização vá à procura, exactamente, do indivíduo, da pessoa concreta, individual. Será uma busca de uma identidade perdida? Não me parece crível pois, se assim fosse, o programa não seria feito com pessoas que, e uma vez mais com o devido respeito, são iguais a milhões de outras. A resposta reside, exactamente, neste milhões anónimos. São estes milhões de anónimos que, se não têm “a fama durante quinze minutos”, ao tornarem o Big Brother no sucesso em que este se tornou, fazem com que fama não valha, de facto, mais do que um mero quarto de hora...
O Big Brother veio tornar explícito algo que era já latente: se, de uma ou de outra forma, todas as culturas tendem sempre a caminhar para um estado kitsch, dado que esse kitsch é, digamos assim, o ideal, a cultura ocidental esvaziou-se. Esvaziou-se . Entenda-se porém que não terá sido de valores que esta se esvaziou, pois é precisamente em valores que o kitsch assenta os seus pilares. Esvaziou-se de pessoas e, consequentemente, insuflou-se de latas de sopa Campbell’s que, curiosamente, se chamam Marco, Zé Maria, Sónia, etc... Estes nomes que citei, citei-os porque tiveram de facto os seus quinze minutos de fama. Tenho que citar também, e estes são imensamente mais importantes, as latas de sopa Campbell’s chamadas António, Pedro, Maria, Manuela, etc, que aos milhões por esse mundo fora viveram os quinze minutos de fama dos primeiros.

O Big Brother foi a verdadeira explosão da cultura vazia das nossas sociedades. Não a inventou, não a fortaleceu, apenas, como Warhol fizera com as suas latas de sopa, a retratou. O problema, porém, é que o Big Brother não é a obra de um génio que pressente a direcção em que caminha um determinado modelo de sociedade. O Big Brother É essa sociedade. É de si, para si. Nada prevê, nada aponta. Apenas, inconscientemente, se reflecte a si própria. Foi isto que Warhol previu quando desenhou a sua lata de sopa. Foi um mundo alienado, de pessoas vazias e descaracterizadas, que Huxley previu quando escreveu “O Admirável Mundo Novo”. A nossa sociedade deu-lhes razão.

Por isso, mais do que o que é que mudou na televisão antes e depois do Big Brother, a verdadeira questão é “O que é que mudou em nós para que a Televisão tivesse um Big Brother”? Nada. Simplesmente faltava um click para que acontecesse aquilo que, mesmo inconscientemente, todos esperávamos, aquilo porque todos ansiávamos. E o que é isto porque tanto ansiávamos? Pensemos: há décadas atrás, todas as pessoas queriam muito ter uma televisão numa casa perto de si, para poderem ver aquela caixinha mágica. Depois, todas as pessoas passaram a querer muito ter essa caixinha dentro de sua própria casa. Depois, inconscientemente, todas as pessoas passaram a querer muito ter a sua casa dentro dessa caixinha mas, como ainda existe um certo pudor, uma determinada hipocrisia, as pessoas arranjaram um compromisso diferente. Senão vejamos: pegaram no muito querer, juntaram a este o pudor, e a estes a hipocrisia, e o que obtiveram como solução final? Voyeurismo. Passaram a querer muito ter a caixinha dentro de uma casa normal, como a deles, uma vez que a deles não podia ser, devido ao pudor supracitado. E como, de uma forma geral, esta regra se aplicava a todas as pessoas, qual foi a solução encontrada? Uma casa que não é de ninguém e que é de todos, e essa caixinha lá dentro: A Casa do Big Brother.
Depois deste acontecimento, é neste patamar de intimidade vazia (vazia porque, não o esqueçamos, o voyeurismo é uma actividade solitária, mesmo se praticada por milhões de pessoas), que a luta das audiências se joga. Seria fastidioso enumerar os sucedâneos do Big Brother a que já pudemos assistir, desde as sequelas do mesmo, até ao Survivor, ao Bar da TV e por aí fora, até pararmos na bem actual “Operação Triunfo”. O denominador comum é sempre o mesmo. Latas de sopa Campbell’s a viverem os seus quinze minutos de fama. Latas de sopa Campbell’s a vibrarem com um mundo em que, finalmente, as latas de sopa Campbell’s têm direito aos seus quinze minutos de fama...
A televisão não muda. São as pessoas que mudam. E hoje, ao olharmos para a televisão, percebemos que as pessoas mudaram e se tornaram em latas de sopa de consumo popular...
Terminando a analogia, Warhol pintou umas quantas Campbell’s ao longo da sua vida. Comparativamente, essas chamam-se Zé Maria, Marco, todos as conhecemos. As outras, as que também existiram mas que nunca foram pintadas pelo artista norte-americano, cada uma terá o seu nome, mas ninguém sabe qual é...
No final todas serão esquecidas porque, no meio de tudo isto, um facto parece ser incontornavel: as latas de Warhol são intemporais. Todas as outras, se tiverem sorte e um pouco menos de pudor, poderão sair do esquecimento e descobrirem-se resplandescentes mas, no entanto, restritas a uns meros, sim o adjectivo, final e afinal, é mesmo este, a uns meros “quinze minutos de fama”...

Como dizia Tyler Durden “fomos amamentados a TV, fomos convencidos que, um dia, todos seríamos rock stars, estrelas de cinema, famosos, ricos e bonitos...”. Nada está mais longe da realidade...

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Tuesday, July 08, 2003
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Este é só primeiro post, escrito muito à pressa no primeiro dia...

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