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Correspondência Interna
Friday, February 27, 2004
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“Nós”

Não existe música nesta tarde que não cai.
Não existem cores,
Não existe luz suficiente
Nem luz demasiada.
Existe um desconforto,
Um vento frio que, na sua passagem, parece varrer os substantivos
Que procuro nesta tarde que não cai.

Restam-me, então, os adjectivos.
Os adjectivos que o vento não leva,
Os adjectivos que o vento deixa, por entre as minhas mãos,
Suspensos no ar,
Neste ar vazio de nomes,
Neste ar triste,
Sem as palavras que realmente contam.

Escrevo-te. As frases rarefeitas procuram-te,
Abrigam-se em tudo o que, em mim, te procura,
Abrigam-se enquanto o vento passa,
E o frio não passa,
Enquanto a tarde se mantém suspensa,
E a noite não chega.

Escrevo-te. Sei que estás sentada,
Tens um livro entre as mãos,
E fumas.
Fumas um cigarro, e depois outro.
E, depois, outro ainda.
As tuas mãos tremem, segurando no limiar da incerteza
O livro que afinal não lês.
O teu olhar mergulha nas palavras, mas não as retém.
O teu olhar vacila, estremece nessa angústia que é tão tua,
Só tua.
O teu olhar sabe a imperfeição do nosso amor.
O teu olhar sabe que as palavras não bastam,
Que as palavras não preenchem todos os espaços vazios
Da distância entre nós.
O teu olhar sabe que essa distância não é física,
Conhece-lhe a essência de desencontro,
A sua natureza profunda,
A sua quase inapreensibilidade.

É por isso que o teu olhar mergulha num livro que não lês,
Como se, nos espaços entre as palavras, pudesse
Intuir o desenho impreciso
Das coisas que nos matam.
É por isso o teu olhar surge
Por entre as minhas palavras, estas palavras,
Para me devolver essa percepção,
Para me entregar essa parte do nosso mundo que,
Também eu, mergulhando a minha alma no tempo de uma tarde que não cai,
Procuro definir, delinear ou, pelo menos, compreender.

Às vezes faltam-nos as palavras essenciais,
Às vezes somos como o ar frio desta tarde,
Às vezes também entre nós os adjectivos procuram
Frases rarefeitas,
E essas frases rarefeitas, no entanto, não encontram abrigo
Em lugar algum.
Às vezes, o vento leva quase tudo
E ficas só tu,
Com um cigarro entre as mãos,
Com um livro agora pousado,
Com o olhar preso num momento de desencanto que,
Por vezes, parece não ir nunca passar.
Às vezes, o vento leva quase tudo
E fico só eu,
Suspenso numa tarde que não cai,
Preso nesse olhar que, afinal,
Não sabe que eu o encontro,
Não sabe, sequer, que no fim desse desencanto,
Depois de todos os vazios,
Também ele me encontra a mim.

Então, eu persisto em escrever-te,
Persisto em escrever-te para que saibas que,
Mesmo quando não temos as palavras que contam,
Que mesmo quando o nosso amor se dilui
Por entre o cinzento dos dias,
E o frio das tardes,
Tu fazes parte de mim.
Tu estás em toda a parte,
Em todas as coisas que faço,
Em tudo aquilo que penso,
Em cada segundo de cada minuto
De cada hora
Da minha vida.

Se calhar, desistirás.
Se calhar, chegarei a casa e já não te irei encontrar.
Ou, se calhar então, chegarei a casa e, ao ver-te,
Tudo o que parecerá existir
Será apenas o mesmo ar sufocante
De todas as coisas que nos faltam,
A natureza imprecisa de tudo aquilo que nos mata.

Isso, porém, não é o que verdadeiramente conta:
O que verdadeiramente conta somos nós,
Nós por entre os dias, Nós por entre os anos,
Nós por entre todas as coisas.
É isso que verdadeiramente conta: Nós.

Não existe vento algum que um dia possa
Levar consigo esta palavra.


Porto, 26 de Fevereiro de 2004.

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Tuesday, February 24, 2004
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Talvez não conte mais do que isso...
O toque dos meus lábios nos teus,
Nada mais,
Nada mais do que isso,
Isso apenas,
E tudo o que é tudo o mais do que esse toque
Dos meus lábios nos teus.

Nada irá mudar.
A luz.
A luz que trazes quando entras,
A luz que espalhas em todos os locais que
Conseguem ainda cheirar
A envolvência da tua presença.

Nada mudará.
Nada, nunca, mudará.
Será sempre a luz,
E o toque dos meus lábios nos teus,
Esse simples toque,
E tudo que nesse gesto se encerra,
Sem que nada mais esse gesto signifique.

Podia falar-te da chuva,
E se te falasse da chuva,
Seria, talvez, apropriado, entreter-te
Com tudo o que o vento traz
Quando sopra nas janelas,
Do lado de fora,
Sempre do lado de fora,
Sempre do lado em que tu não estás,
Em que a tua luz não está,
Presente,
Em cada espaço de todo o espaço que te envolve.


Porto, 7 de Janeiro de 2004

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