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Correspondência Interna
Sunday, February 13, 2005
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A chave encontra-se na verdade. E o que é a verdade? Pudesse eu fragmentar a sequência cronológica dos meus dias em momentos, e seria feliz. Sem continuidade, saberia a verdade de cada momento. E a verdade de cada momento, é algo que se sente, é algo que não deixa um rastro de dúvida. É algo que é. Mas a vida tem uma sequência e os momentos ligam-se a outros momentos, constroem-se esquemas de raciocínios e teorias de continuidade. Aprendemos a viver assim. Nada disso, nada do que aprendi ao longo de todos estes anos me serve. Há uma contradição entre este momento e a sequência cronológica. É um momento que não cabe no alinhamento dos outros momentos. Deito fora o momento e prossigo a vida, ou deito fora a vida e persigo o momento?

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Tributo

"Era um volume colossal e imperfeito do princípio ao fim. Mas era o meu primeiro livro e eu estava apaixonado por ele. Se tivesse tido dinheiro, como Gide, tê-lo-ia publicado por minha conta. Se tivesse tido a coragem que Whitman teve, tê-lo-ia vendido de porta em porta. Todas as pessoas a quem o mostrava diziam que era pavoroso. Aconselharam-me a abandonar a ideia de escrever. Tinha de aprender, como Balzac aprendera, que um homem devia escrever volumes e volumes, antes de assinar com o seu verdadeiro nome. Tinha de aprender, e não tardei a aprender, que um homem tinha de desistir de tudo e não fazer mais nada senão escrever, que tinha de escrever, e escrever, e escrever, mesmo que toda a gente o desaconselhasse, mesmo que niguém acreditasse nas suas possibilidades."

Henry Miller - "Trópico de Capricórnio"

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Thursday, February 10, 2005
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Os dias cravejados de palavras são uma persistência. Uma persistência que vive em mim desde que de mim me lembro. Os dias cravejados de palavras são as duas apreensões de uma mesma realidade. À apreensão sensitiva, que nos orienta nas três dimensões do mundo, sobrepõe-se um outro tipo de apreensão que eu poderia chamar de meta sensitiva. Esta apreensão orienta-nos para outras dimensões. Acho que existe em toda a gente, pelo menos acredito que assim seja. O que acontece é que pode ser mais forte numas pessoas do que o será noutras ou, por outro lado, algumas pessoas valorizam-na mais do que as outras. Acho que a forma desta apreensão meta sensitiva não é igual em todas as pessoas, bem pelo contrário, será algo de personalizado. Em mim, é uma projecção de mim próprio. E, para além de uma projecção de mim próprio, em que eu me estendo mais para dentro do mundo, é algo que me surge em palavras. O que não apreendo como sensitivo, o que apreendo como pertencendo a um outro grau de realidade, surge-me sempre em conceitos, em palavras. É por isso que digo que os dias estão cravejados de palavras. Porque estão de facto. Para mim estão. Existem palavras em toda a parte, possibilidades poéticas nas coisas mais inauditas e nas coisas mais previsíveis também. É claro que, muitas vezes, os dias cravejados de palavras redundam em nada, porque existem dias, muitos dias, em que não apetece escrever. A mim, pelo menos, isso acontece com muita frequência. Já, no início deste livro, falei sobre isso. Acho que por um mecanismo natural de selecção, existem momentos cravejados de palavras que subsistem na memória e esses, mais tarde ou mais cedo, acabam por ser escritos. Outros, pura e simplesmente, são apenas imagens que vi e que nunca tomaram uma forma física.
Às vezes, uma conjugação especial de factores leva a que um momento assim seja imediatamente escrito, ou pelo menos um esboço do mesmo. Aqui, normalmente, conjugam-se uma apreensão especialmente forte, um dia especialmente vocacionado para escrever, a embriaguez. Muitas vezes chama-se a isto inspiração. Não vou discutir se é ou não inspiração. Inspiração é um nome válido para o que acabei de descrever.
Os dias cravejados de palavras. Todos os dias Um número incontável de momentos. Uma sucessão brutal de vivências. Fragmentos. Às vezes, é mais fácil chegarmos perto de um qualquer tipo de verdade absoluta se recortarmos a nossa vida em momentos. Recortada em momentos, a sucessão cronológica da nossa vida esbate-se. Esbatida esta dimensão, cada momento ganha um impulso novo. Torna-se vivo per si.
Estes momentos perseguem-me. Estes momentos cravam-se em mim, com palavras ou pedindo palavras para os significar e sei, desde o primeiro instante em que os vivo, que, ainda no presente, fazem já parte da memória da minha vida.

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Se não fosse a literatura, já teria endoidecido. E, curiosamente, tenho muitas vezes a sensação que é precisamente por causa da literatura que endoideço. Mas não é. Não é a literatura, ou a minha paixão por ela, que está errada. É o mundo. Este mundo igual, este mundo pejado de gente vulgar, este mundo onde pululam seres que não sentem paixão por coisa alguma. Às vezes admiro-me como é que "paixão" é uma palavra que ainda existe. Devia ser um arcaísmo, se tivermos em conta o mundo em que vivemos. Ou se não um arcaísmo, pelo menos pertencente a um dialecto reservado a poucos, reservado àqueles que, realmente, são capazes de se apaixonarem. De se apaixonarem por coisas, por ideias, por pessoas, por momentos, por qualquer coisa.
Então, a loucura está onde? Está no mundo. Porque é o mundo que não reconhece o mundo. Nas pessoa, porque são as pessoas que não reconhecem o que poderiam ser se, em vez de serem autómatos, tivessem a inteligência e a coragem, principalmente a coragem, de serem pessoas.

Então, eu sou. Eu acredito na criação, acredito em magia, acredito no mundo que vive sob a superfície, no mundo do segredo (como escreveu o André), mas um segredo que está sempre aqui, pronto a ser revelado a quem nele se aventurar, a quem nele não tiver medo de mergulhar. Mas todos têm medo. E quem não tem, é posto de parte, visto como um louco. Não nego a minha condição de louco, mas sou louco pela vida, pela paixão, pelas coisas que me fazem sentir vivo. Essa é a minha loucura. Uma loucura demoníaca, mil vezes mais criadora do que todas as loucuras sãs que se encontram a cada momento. Nietzsche escreveu que "são precisas asas quando se ama o abismo". Eu amo o abismo. E todos os dias testo as minhas asas. As asas com que nasci, e as asas que encontro nas palavras, nos olhares, nos sorrisos, nos segredos que o mundo me revela com ânsia.

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