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Correspondência Interna
Friday, March 25, 2005
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Vejo-te e estás no teu meio,
Rodeada pelos teus filhos,
Numa algazarra.
Estás de avental, na cozinha.
A tua beleza sexual, animal,
Dominada pela tua luz maternal.
E, de súbito,
Apareces perante o meu olhar
Mais bela do que alguma vez eu supusera
Que fosses.
Eu que já vi em ti todos os trilhos do desejo
Eu que senti cada vibração da tua carne,
Na proximidade e na distância,
Eu que senti a impossibilidade da amizade
Por entre as tuas mil máscaras,
Por entre as minhas mil máscaras,
Duas mil máscaras entre si,
Na busca de um Eu constante.
Eu que te vi brilhar,
Um brilho vazio, falso,
Arrebatador de néon, de vida feita,
Um brilho de passos dados
Numa escadaria social em que não acredito,
Que vi nesses teus passos a aparência da aparência,
Pois sempre me interessou mais em ti
A fragilidade do que as certezas verbalizadas,
Verbalizadas no verbo ou na pose,
Sendo que as certezas aparentes em ti
Foram sempre o meu abismo,
Agora no verbo e na posse.
Mas hoje estás na cozinha, de volta das coisas do lar,
E eu odeio as coisas do lar,
Mas tens as crianças à tua volta e sorris,
E hoje tens Luz, transpareces por entre a vulgaridade do que te rodeia,
Transpareces na vulgaridade do que te rodeia,
E compreendo por fim - eu que sempre segui o teu magnetismo animal -
Comprendo que cinco anos depois
Vejo como és, realmente,
Insuportavelmente,
indizívelmente,
Bela.

Para a Ana.

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Existem manhãs assim,

Manhãs submersas num grau extremo de realidade,

Manhãs que trasformam essa mesma realidade,

E que a devolvem assim,

Transformada, depurada,

Como uma verdade sempre pressentida,

Numa manhã assim encontrada.

As maiores subversões são as do amor,

E esta é uma manhã subvertida,

Comprimida,

Implodida no espaço exíguo e amplo

Que existe entre a boca

E o centro exacto do teu mundo,

O ponto fulcral das tuas pernas que se abrem,

Como portadas de um templo

Sagrado,

De amor,

Luxúria

E sexo.

Existem manhãs assim,

Em que a tua vibração molhada

Altera a verdade dos conceitos,

E, de súbito, o dia ao nosso redor

Desperta,

Na voracidade irreprimível

De uma torrente sensitiva

Que pilha,

Saqueia,

Incedeia o mundo

Numa brutal celebração de amor.

Conceitos subvertidos então,

É água embriagante

Que os meus lábios bebem do centro de ti,

É o meu álcool branco que te etiliza

Até à loucura.

E os conceitos não param de se subverter,

Prendo-te, viro-te, domino-te

E, entre nós, um mundo selvagem surge,

Entre os meus quadris e as tuas coxas,

Jura amor a manhãs assim,

E nós explodimos antes de morrer.

Existem manhãs assim,

Em que me explicas um grau extremo

De realidade,

Sem palavras.

Não existem mapas para uma manhã assim,

Nem um único traço.

Adormecemos, simplesmente,

E o mundo desliza,

Mágico,

No sono que nos mergulha,

Enquanto nós deixamos uma manhã assim,

Mergulhados na última subversão

De um abraço.



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Thursday, March 17, 2005
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Porque sei que virás aqui.
E quero que, quando aqui vieres, saibas
Tudo aquilo que, dentro de ti, sabes,
Tudo aquilo que sabes que eu sei que sabes,
Mas que ainda assim, preferes fazer de conta que não acreditas,
Que é diferente.
Não é.
Custa.
Muito.
Mas o caminho é este.

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Thursday, March 03, 2005
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Para Henry Miller


Miller,

Escrevo-te um dia depois de ter terminado a leitura do teu “Trópico de Capricórnio”.
E passo a transcrever, palavra por palavra, o que escrevi no preciso momento em que terminei de ler essa tua obra.
“São poucos os livros que nos atravessam, que nos atravessam visceralmente, que se misturam com os nossos fluídos, se incorporam na seiva vital e brutal que cada um de nós é. Isso acontece quando um livro, para além de todas as fruições estéticas possíveis, nos coloca perante nós mesmos, como se tivessem sido escritos por uma alma gémea da nossa.
Não me vou deter em pormenores estéticos, em enquadramentos no movimento literário A ou B. Não posso. Mesmo que o quisesse fazer, não seria capaz. “Trópico de Capricórnio” é uma avalanche existencial, uma catástrofe criadora, uma violência da natureza que derruba todos os embustes em que os Homens alicerçam as suas vidas, deixando assim o Eu perante si próprio.
Não posso fazer de conta. Não posso pensar no que li e reflectir algo como «isto é muito giro e verdadeiro, mas a vida é diferente”. A vida não é diferente. Existe mais vida em “Trópico de Capricórnio” do que em quase todas as vidas humanas. Lemos muitas vezes os livros com o tipo de pensamentos superficiais que acima referi. Porque se tratam de autores consagrados, de autores que «venceram». E pensamos, «mas é muito difícil, ele tinha talento e teve sorte. Mas só talento não chega, ainda para mais num país como o nosso...».
Pensar assim, seria trair-te, Miller. E, na sequência do acima escrevi, seria trair-me a mim próprio.
Não sei se terei sorte.
Mas acredito que tenho o talento.
E sei que só escrevendo a minha vida fará sentido. Escrevendo sempre. Escrevendo, sendo escrever o mais importante, a única coisa que realmente importa.
Tenho também a paixão. «Trópico de Capricórnio» mostrou-me o que desde há anos eu pressentia em mim, em toda a parte, em todas as coisas que fiz, em todas as coisas que aceitei, em todas as coisas que recusei, em todas as coisas em que me envolvi cegamente, em todas as coisas de que fugi desesperadamente.
Essa paixão cresce dentro de mim.
Não posso esquecê-la. As pressões, também é um facto, nunca são para a esquecermos. São antes para a compartimentarmos, para lhe darmos um local giro nos nossos hobbies, ou seja, para a colocarmos descansadinha (e morta) fora da nossa vida...
Assim, amestrada, domada, essa paixão esvai-se num esquecimento, num pacto cobarde sem outro motivo que não seja uma sobrevivência medíocre.
Não quero pactos.
Quero paixão.
Quero escrever. Só esse pacto, de mim para mim (e eu sou todos os Miller do mundo, tal como eles são eu), só essa pacto me interessa. Como foi, também, o único pacto que te interessou, a única coisa que não traíste.”

Ricardo.

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